Recentemente a discussão sobre a redução da maioridade penal tem tomado desde as conversas de boteco até os noticiários da TV aberta. De um lado os sádicos e muita gente desinformada a favor, levadas pelos argumentos autoritários e excludentes fabricados pela mídia vinculada aos interesses das elites; e de outro os contrários, que vão desde organizações mundiais sobre direitos humanos, até partidos políticos eleitoreiros aproveitando o momento para balançar suas bandeiras e levantar suas plaquinhas, tentando nos fazer acreditar que as eleições podem ser uma opção de mudança.
No entanto, dentro dessas discussões, pouco se discute o sistema prisional e penal como um todo. Algumas perguntas bastante importantes acabam sendo deixadas às sombras, como por exemplo: Qual a função das cadeias? Quais as condições de saúde nos presídios? Existem unidades com espancamentos diários? Existem celas superlotadas? Como se dá a alimentação? Doenças são tratadas? Revistas vexatórias de parentes os distanciando dos internos e gerando mais solidão? Como anda os projetos de privatização dos presídios e como isso influencia nas políticas públicas?
A redução da maioridade penal é uma temeridade, porém é muito importante que não reduzamos todo esse debate a apenas esse fato em si, para que a sociedade não tenha a impressão que os problemas estarão resolvidos com a revogação definitiva dessa lei depois de duas ou três canetadas à base de algumas negociações entre a base governista e oposição. É importantíssimo que lutemos contra esse retrocesso somando todas as forças possíveis, porém é importante também que façamos isso sem perder o foco no questionamento sobre questões como: para os interesses de quem servem as prisões? Por que a esmagadora maioria dos/as detentos/as são negros/as e pobres? Por que é tão difícil a condenação de estelionatários do colarinho branco?
Acreditando que uma das melhores maneiras de entender a sociedade é ouvir a voz dos prejudicados, para isso evocamos a música que historicamente tem sido uma ótima ferramenta de disseminação das ideias dos silenciados. Afinal, não dá para esperar que a mídia dominada por algumas poucas famílias e as escolas jogadas às traças com seus conteúdos conservadores façam isso, né?
Através de 13 sons tentaremos colocar em discussão algumas questões sobre as prisões no Brasil e no Mundo.
Eduardo – Playground do Diabo
Como o assunto é Brasil e maioridade penal, nada mais adequado que começar com o RAP do Eduardo (ex-Facção Central) falando sobre a situação da Fundação CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente) em São Paulo. A letra é tão completa sobre a situação dos adolescentes encarcerados que ficou difícil selecionar apenas um trecho. Vale a pena conferir a letra inteira, esse talvez resuma bem a proposta de nossa reflexão:
“O tumor nacional não tá internado na carceragem,
Tá vendo o índice Dow Jones da poltrona de massagem
Não é o menor carente que desperdiça 80 bilhões
Com óbito prematuro em vielas e pavilhões”
Los Muertos de Cristo – Los Gritos del Silêncio II
A banda de punk rock anarquista mostrando como a barbárie da situação carcerária é muito parecida internacionalmente. Os métodos de tortura e a caracterização dos agentes penitenciários demonstrados no som do Eduardo são muito semelhantes em “Los Gritos del Silêncio II”.
“Venho passar um tempo
que arranca minha juventude
Juventude assassinada.
O concreto é meu caixão.
Caixão que vai em silêncio,
navegando no esquecimento.
Leva dentro o tormento.
De meus gritos não há testemunhas.”
Ataque 77 – Espadas y Serpientes
Aproveitando o idioma, vamos para a clássica música dos argentinos do Ataque 77. A música fala sobre a solidão e o medo do esquecimento. A música é a voz de um homem em situação de cárcere lembrando de seu bairro, da companheira, e questionando se eles irão mesmo esperá-lo. Isso nos leva ao pensar sobre o porquê de o Estado ter a permissão de acabar com vidas e histórias baseado em seus interesses, através de concepções criadas por ele mesmo dos conceitos do que é o certo e o errado.
“Aqui na minha cela estou muito só,
Só há lugar para sonhar, sonhar, sonhar…
Sonhos de espadas e Serpentes
Sonhos de morte e liberdade.”
Sin Dios – Las Cárceles
Mais uma banda anarquista espanhola tratando do tema. Além do que já falado nas músicas anteriores, também nos coloca em pauta a discussão sobre o que é um preso político. Apesar de acreditarmos que todo preso é um preso político, baseando-se na exclusão gerada pela própria engrenagem capitalista, existem casos de prisões por militância política em que, por exemplo, pessoas contrárias a regimes totalitários podem (são e foram) encarceradas e torturadas. No exemplo brasileiro, temos o histórico das pessoas presas que participavam da resistência contra a ditadura militar e mais recentemente casos de manifestantes processados/as em atos políticos de junho de 2013, e nas manifestações que denunciavam a corrupção, impactos e violações dos direitos humanos na Copa do Mundo 2014.
Bob Dylan – Hurricane
Indo para o folk e para o inglês, Bob Dylan já nos conta desde os anos 60 o quanto a justiça penal é injusta. O Estado tem poder para prender quem quiser, e em grande parte das vezes prende inocentes ou distribui penas com critérios duvidosos. Quem pode garantir que amanhã não pode ser você? A música fala sobre o caso verídico do boxeador Rubin Hurricane Carter. Hurricane foi surpreendido pela polícia quando andava de carro com amigos, sendo preso por um crime do qual não cometeu. 20 anos mais tarde seria inocentado pela (in) justiça norte-americana. Assim como no Brasil, o motivo inicial para a polícia considerar alguém como suspeito é a cor da pele. Assim como o boxeador negro nos EUA teve sua vida destruída, milhares jovens negros/as da periferia no Brasil são acusados por crimes pelos quais não cometeram, colocando esse país dentro do top 5 dos países do mundo com a maior população carcerária.
“Bello and Bradley and they both baldly lied
And the newspapers, they all went along for the ride.
How can the life of such a man
Be in the palm of some fool’s hand?
To see him obviously framed
Couldn’t help but make me feel ashamed to live in a land
Where justice is a game
Now all the criminals in their coats and their ties
Are free to drink martinis and watch the sun rise”
Toy Dolls – Geordie’s Gone To Jail
E pegando a carona no assunto de prisões de inocentes, vem o Toy Dolls nos mostrando que há uma enorme possibilidade de eles terem razão e Geordi de fato não ser culpado. E quem serão os culpados na sociedade? Os poderosos que geram a miséria e fomentam a desigualdade ou a juventude esquecida sem perspectiva de futuro?
Dropickick Murphys – Fields of Athenry
Outro fator determinante para analisarmos o sistema penal é a Luta de Classes. Não é novidade nem para os ricos que quem vai para cadeia são os pobres. E a raiz inicial da motivação para um crime é a necessidade e/ou a sobrevivência. No capitalismo que vivemos, as necessidades são distorcidas para a sociedade ter a ilusão de que necessita de muitas porcarias inúteis. No entanto, mesmo sendo inúteis para uma sobrevivência mais imediata, essas bugigangas são privilégios que no final das contas mesmo que simbolicamente, criam visões sociais que determinam as relações de poder. No Brasil temos presos desde jovens no tráfico para conseguir produtos de tecnologia como uma forma de inclusão social até mães e pais de família que furtam alimentos para resolver a fome. Eu nunca tive de notícia de filho de empresário preso, e vejo um ou outro estelionatário condenado como bode expiatório pra mídia. Será que estou mal informado? Esse som popular irlandês, pega essa questão em seu nível mais primordial que é a fome. Fala sobre um homem preso por roubar o milho de um lorde inglês para alimentar a família na Grande Fome Irlandesa do século XIX. Seja um milho para alimentar a família, seja um iphone nos dias de hoje, o X da questão está no fato de poucos poderem ter acesso a muito mais do que a maioria das pessoas.
“Nothing matters Mary when you’re free
Against the famine and the crown
I rebelled they cut me down”
Johnny Cash – Starkville City Jail
Falar sobre as prisões normalmente produz canções bastante fortes e convincentes, e no caso do Johnny Cash a solidariedade e a identificação foi além de sua composição. Fez shows e gravou álbuns de dentro das prisões de Folson e San Quentin, sem contar também as homenagens em muitas canções. Starkville City Jail, nos mostra o quanto muitas prisões podem acontecer por motivos banais como, por exemplo, estar na rua no momento de um toque de recolher colhendo flores. Escancara aos nossos olhos que quem tem o poder de prender pode fazer isso por qualquer motivo, e a vítima quanto menos poder tiver maior a possibilidade de não conseguir seque se defender.
509-E – Carta a Sociedade
Muitos escreveram sobre. Johnny Cash foi de fora ver com seus próprios olhos. Mas nada como a voz de quem esteve lá e sofreu na pele. Falar do sistema prisional e não mencionar o 509-E, é uma fala incompleta. Formado por Dexter e Afro-X dentro da cela com o código que intitula o trabalho da dupla, o 509-E é um dos clássicos do rap nacional brasileiro. Segue a “carta à sociedade”, em que a situação é resumida de forma certeira.
Racionais MC’s – Diário de um Detento
E falando em Carandiru, barbárie e fatos reais, chegamos ao “Diário de um Detento”. Um som que está pra lá de clássico dentro da música brasileira. Demonstra com precisão cirúrgica o ambiente da penitenciária do Carandiru antes e durante o Massacre do Carandiru, no dia 2 de outubro de 1992. Se é que precisa mais provas das atrocidades e covardias cometidas pelo Estado dentro das prisões, aí está uma bem convincente.
Anti-Flag – Mumia’s Song
Outro caso emblemático é a prisão de Mumia Abu Jamal, ex-integrante do Partido dos Panteras Negras e que ficou popular com o seu programa de rádio “A voz dos sem-voz”. Condenado ao corredor da morte em uma ação policial e jurídica bastante duvidosa, ele nunca recebeu um julgamento imparcial tendo em vista as muitas provas de sua inocência. Fica explícito o caráter de perseguição política de sua prisão. A dimensão do caso levou a várias entidades e personalidades clamarem por justiça em sua defesa, tais como: Congresso Nacional Africano, Amnistia Internacional, Parlamento Europeu, Ordem Nacional dos Advogados (dos Estados Unidos), Coalizão Nacional pela Abolição da Pena de Morte, Jacques Derrida, Stephen Jay Gould, Jesse Jackson, Danielle Mitterrand, Salman Rushdie, arcebispo Desmond Tutu, Elie Wiesel, Rage Against the Machine, entre muitos outros.
Luana Hansen – Funk da Realidade
E tratando mais especificamente das questões atuais do Brasil, Luana Hansen lançou recentemente o “Funk da Realidade”, que também faz um resumo da situação dos internos da Fundação CASA, paralelamente a uma crítica ácida às alas ultra conservadores que a cada dia cresce mais com sua influência e poder dentro das estruturas do Estado: a chamada BBB – bancada da bala, do boi (pró-ruralistas) e da bíblia (religiosos fundamentalistas), que vêm se apoiando mutuamente para propor e aprovar no congresso nacional propostas que ferem os direitos humanos e a própria constituição, como é o caso da Redução da Maioridade Penal.
Abuso Sonoro – Prisões
Pra finalizar essa nossa lista, chega à banda punk Abuso Sonora, com a frase “Enquanto um estiver preso/Ninguém estará livre”. Após ver todos esses casos, fica difícil não concordar que as cadeias são produzidas como um braço de uma ideologia desumana. A sociedade vem caindo no erro de sempre pensar em formas mais eficazes e duras de punição. Não se discute mais sequer qual a função em existir o encarceramento de seres humanos. Há muito que a ideia de ressocialização (se é que desde sempre já não foi apenas uma fachada) se perdeu no ar e o que se vê é um clamor sádico por punição e tortura. É claro que essa ideia sempre se direciona para as classes mais oprimidas e sempre beneficiando quem tem o poder nas mãos. Uma sociedade que pensa em justiça teria que ter sempre em seu horizonte o Abolicionismo Penal. Essa questão não é nem colocada em pauta, não está no horizonte político e social. A tendência dos Estados está sendo o retrocesso para a sistemática criação de formas cada vez mais brutais e desumanas de punitivismo. A ponto de muitos pensarem que a solução mais primordial para problemas sociais é a pena de morte, outros tomarem como exemplos ideias e métodos como cortar as mãos de condenados, linchamentos, etc. Uma sociedade livre e justa começa pela forma como ela resolve seus problemas e conflitos, e olhando por esse lado, nos certificamos que o mundo do século XXI anda cada vez mais doente, neurótico e autoritário.
Pra finalizar, certamente alguma mente conservadora irá pensar. “Acha eles bonzinhos, então leva pra casa”. A resposta seria que se tivesse um lugar que coubesse toda essa população, uma espécie de território autônomo em relação às leis do Estado, eu levaria com certeza. Até o ponto de esse território não ser mais considerado minha casa, e ser a casa de todos/as. É pra isso que muitas pessoas lutam e resistem. Levaria se pudesse toda população carcerária pra minha convivência, mas não levaria um reacionário nem à esquina.
Saiba mais
Para conhecer grupos que nunca param de pensar nessas questões:
Rede 2 de Outubro
Associação AMPARAR
Minidocumentário sobre o projeto de privatização dos presídios:
Quanto Mais Presos, Maior o Lucro