Game of Thrones e a Transmídia – Por que as séries mais importantes da televisão são as de finais mais polêmicos?

Dani Baroni
Não, este não é mais um texto para falar mal do final de Game of Thrones, muito menos para detalhar seus problemas e dizer como poderia ter sido melhor. Afinal, que a grande maioria do público detestou o final todo mundo sabe e não tem por que continuar falando sobre como foi ruim ou ficar remoendo o final que poderia ter sido e não foi.

A maior parte do público vai concordar que as duas últimas temporadas da série já não foram aquela maravilha, apesar dos muitos milhões de dólares a mais investidos na produção. Seja por pressa de acabar, falta de roteiristas competentes ou por falta de apoio dos livros, é inegável a insatisfação dos fãs com os últimos anos do que foi esse fenômeno televisivo mundial. E bem, repito que não vim aqui estudar o final de GoT em si. O que quero é entender o que é que torna Game of Thrones um fenômeno, qual a importância disso para o mundo da TV e como isso pode estar relacionado em uma conclusão pouco satisfatória. E não haveria como eu explicar o que quero dizer sem falar sobre a transmídia.

A transmídia nada mais é do que a expansão do universo narrativo de uma história, que ocorre através da utilização de múltiplas plataformas e formatos, utilizando tecnologias digitais atuais, proporcionando ao espectador se envolver em uma experiência multimidiática, mas no mesmo universo narrativo. Com base nisso, GoT é um case de sucesso de como uma obra pode utilizar a transmídia para crescer, a exemplo dos inúmeros jogos, vídeos de Youtube, HQs, sites temáticos etc., mas é claro que não foi a primeira série a fazer isso.

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Twin Peaks foi provavelmente a primeira série de televisão que botou isso em prática. Afinal, até 1990, a TV era uma coisa completamente diferente do que é hoje. A ideia de que um programa de TV pudesse ser como um filme de 10 horas dividido em partes era impensável. Foi David Lynch, àquela altura já conhecido por seus trabalhos no cinema, juntamente com David Frost, quem decidiu que uma série poderia sim ter uma linguagem e estrutura cinematográfica. Com um mote misterioso, porém simples (“Quem matou Laura Palmer? ”), que instigou conversas e teorias, Lynch causou uma revolução nas narrativas seriadas, já que aproveitou essas discussões entre espectadores para criar material extra, como o livro “O diário de Laura Palmer” e depois o filme “Fire Walk With me” para acrescentar às especulações instigadas pela série. O final de Twin Peaks, não por coincidência, é tido por um número de fãs como muito polêmico; só não mais polêmico que o retorno da série em 2017.

E se Twin Peaks foi o que destrancou a porta das possibilidades narrativas para a TV, foi Lost quem meteu o pontapé nessa porta e deu início a um novo capítulo da mídia televisiva e mudou nossa forma de consumir TV para sempre. Explico: Com uma narrativa calcada em mistérios e enigmas, Lost embarcou um público imensurável para dentro e fora de sua ilha tropical; e quando digo imensurável, me refiro ao fato de que, pela primeira vez, o sucesso de uma série não pode ser medido em audiência, uma vez que os downloads ilegais estavam em alta e um episódio novo de Lost poderia demorar semanas para chegar às telas brasileiras e ninguém queria esperar tudo isso para se atualizar, noção que hoje é muito mais comum.

Nenhum seriado havia criado tamanha comunhão entre os fãs antes de Lost ir ao ar. Além de a internet ter possibilitado o acesso ao seriado, ela também deu voz aos seus espectadores, aproximando-os uns dos outros. A internet tornou-se então uma plataforma para compartilhar teorias e especulações sobre a trama. E isso foi só o início do que seria um dos exemplos mais estudados da convergência de mídias na comunicação. A chamada narrativa transmidiática estaria para alcançar níveis que Twin Peaks jamais sonharia: fóruns de discussão, revistas de teorias, jogos para PC e console, episódios para celular, sites reais de empresas fictícias da série etc.

A narrativa transmidiática tornou-se bem-sucedida não apenas pelo investimento dos produtores, mas também pelo engajamento dos fãs. Boa parte da produção desse conteúdo midiático partia agora não só dos produtores da série, mas também do espectador, o qual passava a ter a qualidade de coautor da obra, já que ajudava a expandir o universo narrativo. A convergência dos meios nos coloca em uma espécie rota de colisão e o que era para ser um simples programa de televisão se torna um fenômeno do qual somos participantes ativos. Entre tantas possibilidades e caminhos para este fenômeno, o que mais se destaca é a inversão da estrutura comunicacional, em que emissor e receptor se fundem.

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Game of Thrones fez o uso da transmídia tão bem quanto seus antecessores, mas numa escala infinitamente maior. A série já vinha de um outro meio, o livro, e seguiu expandindo seu universo com todo tipo de mídia e, estando no auge da era da internet, exigiu um imediatismo dos espectadores que nem os downloads ilegais podiam suprir, forçando a HBO a exibir episódios simultaneamente no mundo todo e levando muitas pessoas que já viviam só de streamings a assinarem TV a cabo de novo.

Além de uma ambição orçamentária crescente, que tornava a série visualmente atraente, os produtores de GoT aproveitaram a narrativa complexa e intrigante dos livros de George R.R. Martin, bem como seus muitos personagens intrincados, que, somados à nudez e violência gratuitas típicas da HBO, resultaram em uma série perfeita para repercussões fora das telas.

E a cada temporada, o engajamento dos fãs só crescia e as discussões, teorias, vídeos de Youtube, fóruns, podcasts se multiplicavam numa escala estratosférica, validando cada vez mais a ideia de que, numa narrativa transmidiática, a tendência é que o espectador também se torne coautor da obra. Com isso, a série que nos influencia passa a ser influenciada por nós, já que os roteiristas estão interessados no que está sendo conversado e teorizado por aí.

E é exatamente neste ponto que eu queria chegar. As vantagens de um espectador que participa ativamente do desenrolar de uma série são claras: mais audiência, mais orçamento e mais conteúdo pós-episódio para consumir. Mas e as desvantagens? Bom, o final de GoT é um exemplo do que geralmente acontece quando uma série grande se aproveita da narrativa transmídia para crescer e claramente nem tudo são flores. A convergência de mídias é tanto uma bênção quanto é uma maldição, principalmente quando utilizada em grande escala, como foi o caso de Lost e Twin Peaks, que também tiram finais extremamente contraditórios.

É uma lista de fatores que pode levar a um final de série decepcionante. No caso de GoT, o fato de não haver mais livros em que se basear tirou um pouco do equilíbrio do roteiro, bem como uma mistura de pressão e saturação em cima dos showrunners D.B. Weiss e David Benioff, que quiseram concluir depressa uma trama tão complexa. Junte isso com uma horda de fãs exigentes (com razão) com expectativas construídas muito além do que foi passado na TV, que vêm teorizando conclusões infinitamente mais intrincadas do que o que poderia ser entregue pela HBO, e temos nada além de reclamações sobre o final. Não por ele ser péssimo sozinho, mas por partir de uma construção extremamente pobre resultante de tudo que citei acima. Essa nova coautoria possibilitada por uma narrativa de duas vias pode desorientar um roteiro ao decidir fazer a vontade de alguns, muitas vezes em detrimento da coerência; e o resultado é que vimos.

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Portanto, assim como Daenerys, a própria mãe dos dragões, a transmídia é heroína e vilã, dependendo de quem está olhando, mas isso não significa que não foi incrível vê-la libertando escravos em cima de um dragão e mudando a história de Westeros. A transmídia é ainda muito jovem e está aprendendo a governar a TV, mas isso não tira o crédito do que foram as jornadas espetaculares proporcionadas pelo uso máximo de narrativa transmidiática. É inegável que Game of Thrones se juntará a Lost e Twin Peaks na lista de cases de TV estudados na Comunicação quando o assunto for convergência midiática. E, convenhamos, isso não é pouca coisa.

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