Começamos no veneno, tensos e cheios de interpretações equivocadas. Tudo causado por mim, obviamente. Preciso treinar minha ironia – piada interna. Vocês não precisam saber dos detalhes.
O que vocês precisam saber e conhecer é o duo post-punk (punklore?) de nome La Burca. Performáticos, misturam o minimalismo como o faça-você mesmo por meio do punk e do folk. Formada em 2011 na cidade de Bauru, no interior de São Paulo, estrearam nos palcos em fevereiro de 2013. Seus integrantes são Amanda Rocha (composição, vocais e violão) e Lucas Scb (bateria).
Segundo a própria banda, suas influências vão desde o (neo) folk passando pelo (pós) punk, temas instrumentais e bandas alternativas. Rabiscada por Amanda, a arte do primeiro EP foi inspirada em histórias em quadrinhos literárias. Os integrantes circulam pelo cenário independente do interior paulista desde os meandros dos anos 90.
Em 2013 gravaram o EP de estreia com nove músicas mesclando sons instrumentais com baladas melancólicas pós-folk e pegadas mais punk. Distribuído de forma independente e artesanal, o EP e outros lançamentos da banda estão disponíveis para download (e também venda) no Bandcamp deles.
Com essa introdução entramos no bate-papo com a La Burca realizada pelo Felipe Sunaitis, da banda Desacato Civil e integrante do Desobediência Sonora. Confira!
Felipe Sunaitis – Antes de ouvir o som, o nome da banda e as referências estéticas ligadas à obra Burca do Pablo Picasso talvez já nos explique muito sobre a proposta de vocês. Falem um pouco sobre essa escolha e sobre a opinião de vocês em relação à importância do alinhamento das escolhas visuais com as escolhas musicais em uma banda? Há relação mesmo com essa obra do Pablo Picasso?
Amanda – Hmm, interessante você citar a obra Burca do Picasso, embora não tenhamos pensado conscientemente em nenhum momento nela. Mas, de alguma forma, são várias as influências estéticas guardadas no nosso “museu interior” de imagens que carregamos/sonhamos/vivenciamos. Não sei se há uma ideia tão clara e óbvia quanto ao alinhamento visual – não é nada pensado – planejado, é algo mais primitivo que se faz necessário.
Felipe Sunaitis – Ainda sobre as escolhas estéticas, existe algum motivo especial em relação as maquiagens que vocês usam nas apresentações?
Amanda – Foi e é tudo muito instintivo. Na primeira apresentação resolvi pintar os olhos e gostei demais do efeito e me senti, de certa forma, mais protegida, digamos, com aquela pintura rupestre. Então meio que virou um ritual a pintura, e nunca sei o que vai sair no rosto, é algo como um ritual primitivista, estético. Uma persona de carne, osso, batimentos cardíacos e tinta. É até agora um complemento do tocar, de me sentir bem no palco, além do instrumento.
Lucas – Tenho feito um traço vertical no rosto, me lembra uma grade da janela que é a música, estou do outro lado no momento, mas ainda espectador.
Felipe Sunaitis – Outra referência bastante presente em vocês é a ligação política com o feminismo, DIY e um anarquismo mais comportamental típico da cultura punk. Estamos certos em elencar essas influências? Existe mais alguma influência que não mencionamos?
Amanda – Não nos consideramos uma banda “ista”, e sim um duo que simplesmente se identifica com algumas questões e causas, fazemos parte de uma cultura DIY, isso está no modo de pensarmos e fazermos nosso rolê e som, desde o modo que produzimos os CDs, camisetas etc. Há um comportamento sonoro que desemboca num certo niilismo anárquico de encontro ao punk, post-punk, neofolk e o filhote grunge.
Lucas – Paz & Amor e boa vigília pra noise.
Felipe Sunaitis – Vocês se denominam como música post punklore. Essa mistura entre a melancolia e o tom soturno do post-punk com a herança campestre do folk tradicional, na visão de vocês essa direção tem alguma ligação e/ou influência com o meio social que a banda convive, do interior de SP misturado ao mal-estar psicológico que a cultura ocidental produz num contexto mais amplo?
Amanda – Não tem nada a ver com esta ideia romântica do interior, muito pelo contrário, são referências musicais que estão em todo canto do planeta e não especificamente num mal-estar psico ou rural-campestre. Tinha uns sons guardados há anos que flertavam com tudo o que escuto desde sempre, e resolvi condensar tudo o que mais curto ouvir numa banda/duo só: post-punk, punk e folk, o post-punklore. Na real, também sonhei com este termo “punklore”, ou escutei em alguma música (num sonho?) mas não me lembro nem fodendo até que ponto foi sonho ou som, enfim… isso ficou na minha cabeça ecoando…
Lucas – A única diferença é que temos um pouco mais áreas verdes por aqui! Violências, injustiças e descasos acontecem em todos os lugares e acredito que tudo se influencie.
Felipe Sunaitis – Woody Guthrie (compositor norte-americano de folk music) tinha um adesivo no seu violão que dizia “This Machine Kill Fascists”. Qual a opinião de vocês sobra a ideia que a música é uma ferramenta poderosa para contribuir na destruição das injustiças e opressões, como as produzidas pelo fascismo e o patriarcado?
Amanda – A música e toda arte que se preze tem o dever de combater e gritar a cada dia mais contra todo tipo de injustiça-insanidades-repressão-preconceitos-bolsonaros-e-alckmins-e-tantos-outros-putos, enfim, ser um meio libertador e emancipador e não mais um item de consumo alienante e acachapante da indústria. É o inverso, senão não há razão de existir, produzir por produzir é lixo cultural.
Inclusive agora passamos por uma barra, porque o batera Lucas foi preso de forma totalmente arbitrária por esta polícia-política fascista que vigora no Estado de SP, e não só, claro. O cara foi acusado de algo que não cometeu, e mesmo sem provas, foi levado pra cela, totalmente abusivo o que rolou (ele ficou 3 dias preso). Parece que vivemos O Processo de Kafka a cada dia mais.
Mais uma vítima de um sistema excludente e nefasto. Então mais do que nunca, sentimos na pele, toda essa injustiça e opressão insana onde os critérios são levianos e os massacres cotidianos. Em relação ao patriarcado, outro câncer social infernal, o combate é ininterrupto até porque é dele que surgem várias outras formas de cerceamento e opressão social. Se o bagulho é infinito, a luta e o som também o são.
Lucas – Acho que a música ajuda a conscientizar, ajuda a pensar na vida e criar os próprios valores e também serve pra extravasar as tensões. Falando sobre a injustiça ocorrida comigo, apesar de não haver um processo legal, ainda estaria preso caso não tivesse quem corresse por mim do lado de fora e sorte em outros fatores. Agora aguardo mais notícias em liberdade provisória. É verdade que podem te apontar, acusar, difamar, amedrontar, maltratar. Qualquer coisa que se sintam à vontade em fazer, mas não é correto. Nem dizer que é normal só porque acontece muito disso por aí. Sempre bom expor ideias, escutar, contestar, e a música é um meio pacífico de protesto.
Felipe Sunaitis – Sobre as composições, conte-nos sobre as temáticas abordadas e o que os motivam no momento da criação dos sons e letras? Aproveitando, quais bandas/músicos/artistas vocês mencionariam como maior influência para vocês?
Amanda – São temáticas mais íntimas, sobre fraturas e encaixes do relacionar-se, abandonar-se, as vezes os temas são melancólicos-abstratos, e também há uma questão voltada ao gênero feminino, do amor e celebração as mulheres. Acho que tudo é inspirador, o que vivemos, ouvimos, um copo que cai, um berro, um beijo, amigos que se foram (Goos – som instrumental).
Por exemplo, a Goos veio em partes, e faltava um fim, e um dia estava sonhando e acordei no meio da madruga com a parte final, foi muito intenso. Às vezes os sons surgem de um batuque e depois vem a letra, ou então canto uma frase que me vem e nasce uma canção. Mas geralmente vem tudo de repente, e gravo com o que tiver na mão pra não perder. Não tenho muita paciência pra ficar pensando o som, elaborando e tals, não sei ler partitura, essas coisas, então é algo bem cachoeira, vem e me lava, roots.
E tem também o lance dos quadrinhos, sou fã de HQs literárias, e Blood – uma história de sangue me impactou muito, a aquarela de Kent Willians é absurda e isso sangrou nos rabiscos do encarte e capa que fiz no EP La Burca (2013). Foi uma década violenta, rsrs, as músicas gravadas são canções que tinha guardada entre 2002 a 2012. Sonoramente é muita coisa que me pega, Wipers, Can, passando por Neil Young, Patti Smith, guitar bands, coisas da 4AD, L7, enfim. Tem fases que tô mais numa vibe acústica, Leonard Cohen, noutras já quero pogar com Germs, beber e quebrar o violão. E misturo tudo, não nesta ordem.
Lucas – Tento esvaziar a cabeça e sentir o som. Minha influência é rock em geral, brasilidades, música clássica, tribal. Bauhaus, Metá-Metá, Emir Kusturica & The No Smoking Orchestra e umas instrumentações pelo mundo via Youtube tem feito minha cabeça.
Felipe Sunaitis – Vocês indicam para nós alguma banda atual do cenário independente, sobretudo similar ao som que vocês fazem? Aproveitando, como anda o cenário independente fora do circuito das capitais?
Amanda – “Similar is hard to find”… Putz, não pude evitar… Parafraseando o nosso som… Brinqs, ah, meu, acho que duos é uma coisa muito específica e cada um tem uma particularidade sonora fantástica, pega o duo instrumental post das lindonas Vanessa e Duda, ou então Medialunas, não tem um igual ao outro, acho incrível a diferenciação entre os duos e não o contrário… É um território múltiplo… Eu gosto muito de som instrumental, tem um power trio de Jaú muito foda, Mais Valia, que acabou de lançar o rebento, vale a pena dar o play, Acromo também é bem massa, um sludge-doom-experimental (mas não gravaram ainda).
O Centro-Oeste é um faroeste sonoro, tem rolado muita banda, há um boom autoral realmente legal e a galera começou a dar mais as caras, fazer evento, embora ainda não seja ideal porque são poucas casas oficiais, pubs abertos pra som autoral no interior. Então o corre underground tá mais acelerado do que nunca. Há um circuito legal entre Bauru, Jaú, Botucatu, Marília, Ourinhos. Uma galera que há mais de 10 anos faz o rolê acontecer, como o Tiago Duarte (Reiketsu, Vento na Cara) de Ourinhos, Juninho (Subverta Distro, Artigo DZ9?, Acromo) aqui em Bauru.
Felipe Sunaitis – Conte para nós como foram as experiências de tocar no Girls Rock Camp, na Marcha das Vadias e no saguão do Centro Cultural da Juventude?
Amanda – Foram rolês muito especiais. No GRC embora tenha sido muito rápido porque tocamos de manhã às 11h e tivemos que vazar na sequência pra tocar a noite em Ourinhos, a experiência foi linda e única, ver aquelas meninas vidradas no som, montando banda e o corre todo que a Flávia Biggs e as voluntárias dão é foda, sem palavras. É um projeto vivo, urgente e necessário, que só tende a crescer e a fortalecer as meninxs… Coisa fina. Na marcha foi um lance múltiplo, tocamos com a guerreira da roça Sara Donato, mina foda, mil grau, foi lindo, com sarau também… Mic aberto… O saguão foi algo bem louco, o lance da estrutura, porra, animal, tá ligado que o underground roots é osso de equipo, né, então imagina… Os vídeos ficaram fodas, tem um som inédito “Into the Wild” que gravamos lá e tá no Youtube, dá pra ter uma ideia… Encontramos a Mariângela que fazia o Distúrbio Feminino na antenAZero… Foi massa!
Felipe Sunaitis – Recentemente, houve um evento exclusivo para mulheres do Comitê de Combate ao Machismo Bauru-SP, e segundo post do Facebook de vocês houve uma polêmica sobre o assunto dentro da cidade com outras bandas. Conte um pouco mais sobre o que ocorreu e sobre a importância de eventos como este, exclusivos para mulheres. Aproveitando esse assunto, vocês acham que houve algum avanço em relação ao combate ao machismo dentro das cenas underground nesses últimos tempos ou a resistência contra o protagonismo feminino ainda é muito grande?
Amanda – Foi uma situação chata e de gente que não tem o que fazer, a não ser perseguir a vida alheia. Tocamos num dia especial com o duo feminista Post, com oficina de som das minas do duo voltada exclusivamente a mulheres e teve uns caras que se indignaram com a exclusividade do evento. Seria cômico se não fosse tristemente ignorante. A cultura machista/sexista no cenário underground interiorano ainda é constante, porém disfarçada com ações pseudo-libertárias (isso podemos estender pra vários outros nichos, claro), notei que há tentativa de inversão nesses rolês, acabam pensando em segregação ao invés de fortalecimento feminino, dá pra a-c-r-e-d-i-t-a-r? Mas eu faço uns eventos às vezes e também temos bandas parceiras, minas e caras que fortalecem e somam como o Juninho da Subverta Distro. Toco desde meus 14 anos no cenário em bandas mistas e vejo uma resistência no tocante mulher-protagonista sim, mas isso não impede e nunca vai me impedir de fazer o que mais gosto: celebrar a vida em canções.
Felipe Sunaitis – Para encerrar, conte a respeito da publicação do seu livro inspirado nos livros do Sandman, do autor Neil Gaiman. Qual o nome, com qual objetivo foi realizado e como pode ser adquirido?
Amanda – Sou fotojornalista e lancei o fotolivro A Imagem no Museu do Sonho – uma visão imaginária de Sandman, em dezembro de 2014, inclusive fizemos a trilha sonora do livro com o som instrumental “Diário de uma Sombra”, tá no nosso canal do Youtube. O livro é um fotoensaio não-linear inspirado nos Perpétuos (Sonho, Destino, Morte, Destruição, Delírio, Desespero e Desejo), sou fã de Sandman e comecei a fotografar o tema na facul… foi conclusão de curso de jornalismo de anos atrás e através da Lei de Estímulo à Cultura do município consegui lançar, foram apenas 100 cópias.
Felipe Sunaitis – Amanda, depois dessa última pergunta, aproveite para deixar alguma mensagem ou acrescentar algo que ficou faltando, tudo bem? Obrigado!
Amanda – Ah, procuramos selos ou pequenas gravadoras para lançarmos em parceria nosso próximo álbum, queremos distribuir fisicamente além do centro-oeste paulista. E queremos tocar também na sua cidade, estamos agendando a partir do segundo semestre. Dá um salve pelo laburca@gmail.com, obrigada!
Publicado originalmente no Nada Pop, em 7 de junho de 2015.